terça-feira, 10 de abril de 2007

Sem Abrigo

Todos os dias passava naquela mesma rua a caminho do escritório. Todos os dias sentia pena da pequena garota, uma mendiga. Pobre e rota, caminhava pela rua pedindo esmola a qum passava. Quase todos passavam ao lado, ignorando-a, fingindo que nem a ouviam. A pobre rapariga baixava a cabeça, humildemente, pedindo a apenas uns trocos ou comida. Sempre que passava por ela fazia questão de a olhar e cumprimentar, oferencendo-lhe cinquenta cêntimos. Ela, terna, agradecia. era querida, a pequena. E mesmo assim não era assim tão pequena. Tinha já por volta dos seus 12 anos quando a vi pela primeira vez. Abandonada pelos pais nesta cidade, perdida no interior, rodeada de esterco psicológico e social. A segurança Social podia-a ter ajudado mas tinha pouco dinheiro e ela nem BI tinha. Vagueava à espera duma resposta do estado. Estava à espera duma casa dizia ela, ou só de um quartinho... Eu ternamente sorria e afirmava que não devia tardar muito. Entretanto não sabia onde ela morava, nunca tive coragem de lhe perguntar. A minha mãe sempre me dissera que não devia dar confiança a mendigos, dizia que se aproveitavam de nós, mas a rapariga sempre me pareceu tão honesta que raramente repensei a minha aproximação. Falavamos um pouco, 50 segundos todos os dias, a caminho do emprego. Eu levava-lhe um pãoque ela ia devorando enquanto descia a rua. Então dizia-lhe que um dia ia estudar e viajar. Prometia-lhe aquilo que eu pensava que qualquer ser humano tinha direito a ter. Depois despedia-me, dando-lhe um aperto de mão e 50 centimos pró almoço. Fazia assim o que eu achava certo. E quem dera que toda a gente lhe desse tanto como eu dava, não passaria decerto fome. Mas passava, fome e frio... Foi em Outubro que a vi pela primeira vez.
Passaram-se dois meses e as ruas outrora quase desertas encheram-se de pessoas com paz no coração e muita vontade de fazer os outros felizes. Apesar de tudo o cinto adava apertado e sobrava pouco dinheiro para a caridade, a prioridade eram as prendas. Mas lá conseguiu juntar dinheiro para um cobertor. Passeava agora agarrada a ele, quentinha e quase feliz. Eu elogiei-a dizendo que lhe ficava bm, em tom de brincadeira. Ele assentiu e mais uma vez não me repreendeu a brincadeira de mau gosto. Todos os dias aprendia imenso com ela, aprendia o que era a humildade. Era-lhe grato.
Era Natal, não podia deixar de lhe dar uma prenda. A pobre criança merecia-a e eu queria faze-la sorrir. Comprei-lhe uma boneca. Era linda. Ao rasgar o embrulho as lágrimas escorreram à pequena e pela primeira vez araçou-me. Tive que me esforçar para sorrir e não chorar. Desejei-lhe um Bom Natal. Ela disse que já estava a ser.
Fui para casa, para casa dos meus pais, fora da cidade. A consoada tinha que ser em família. Abandonei a miúda por uns dias. E relaxei, gozei a paz da comunhão em família, rimo-nos à lareira, contámos histórias. Mas nunca falei da rapariguinha. Voltei dia 27, gordo e lento, carregado de tupperwares e caixas de comida. E voltei ao trabalho.
Estranhei não a encontrar ao descer a rua. Mas segui sempre o meu caminho. Ao chegar ao escritório sentei-me à secretária, mas assustei-me: a pilha de projectos era tão grande que mal via o ecrã do computador. Resolvi preparar uma estratégia, saí para pensar nisso, fui ao café. Ao entrar peguei no jornal e sentei-me. A pele perdeu a cor quando lia a primeira página: "Criança sem abrigo é violada e morre". As lágrimas escorreram, nervoso, levei o jornal e não paguei o café. A angústia era grande mas o sentimento e culpa superava-a. Chorava-a. Laguei tudo e fui a cemitério. A campa improvisada, com uma cruz de pau, não tinha flores. Era apenas um monte de terra, ladeado por palácios de mármore. Era ela, sempre discreta, sempre comigo, era a minha pequena amiga. Era ela... Chorei-a a manhã inteira e a tarde toda. Mas quando anoiteceu o coveiro levantou o meu corpo atónico e sacudindo-me a roupa disse: "Ninguém tão inocente deveria passar a derradeira fronteira". Eu concordei. "Certamente está num mundo melhor" murmurei. Ao chegar a casa senti raiva de mim, desta cidade, dos homens. Estava seco de lágrimas. Peguei então no jornal. Todos se desculpavam, moviam-se como palhaços num circo, passando a batata quente duns para os outros. Ninguém tinha culpa. A rapariga fora encontrada onde morava, numa pequena caixa de cartão junto ao castelo. No cobertor encontraram sangue dela, uma grande quantidade. A hemoragia foi causada pela pentração. O violador, esse anda fugido. Ninguém sabe ao certo que é, mas também ninguém quer saber. Ninguém quer justiça. No fundo todos estão contentes por serem menos interpelados na rua. Menos chatices, a miúda era até referenciada por uma série de assaltos. Parece que o povo já quase decidiu que não foi crime. O maldito fez o que devia, acabou com parte duma praga da sociedade: os mendigos ladrões. Estúpidos, como odeio a natureza humana. Como odeio esta gente mesquinha que não é capaz de estender a mão, não é capaz de se sujar para ajudar, não quer ser incomodada. Odeio-os, tal como me odeio a mim. Podia ter-lhe oferecido uma casa, mas ofereci-lhe uma boneca. Podia ter-lhe perguntado onde vivia mas não quis ser importunado com a resposta. E sim sou responsável tanto como o violador, ou a senhora da segurança social, ou o estado, ou o mundo, ou tu. Sim sou culpado porque podia ter feito algo para salvar realmente alguém. Podia ter dado vida e fiquei apático.
Agora continuarei a vê-la, visitá-la-ei todos os dias e pedirei para que ela me salve. Vou ter com ela à única casa decente que já teve.

sábado, 7 de abril de 2007

Pensamento do dia

Ergui as mãos ao céu e gritei paz. O silêncio tomara conta da paz tal como a solidão tomara conta de mim. Seria então estúpido gritar por paz mas seria ainda mais estúpido gritar para alguém, comemorar com alguém. Na dúvida e arrependido sentei-me novamente. Deu-me vontade de gozar esta paz e gozei-a, bradei aos céus o quanto a amei e celebrei-a com os meus irmãos. Mas tudo isto ocorreu em silêncio, sentado na poltrona de sempre. Deste modo não a perdi, mas também não a conquistei. Possibilitei aos outros um pouco de descanço e uma certa paz (pelo menos relativamente a mim). Assim também me perdi, acreditando que a ausência era paz, e a verdade é que nunca mais me encontrarei, nem sequer à "verdadeira" paz...