domingo, 11 de fevereiro de 2007

Os Mateus

A porta entreaberta deixava entrar um pouco da luz da sala de estar. Os móveis ingleses, maciços, pesados e velhos suportavam todo o peso do conhecimento. Os livros encontravam-se religiosamente catalogados e ordenados, tudo feito com um rigor ancestral. O responsável por tal organização dormia agora na poltrona com o gato aos pés. Nos móveis jaziam obras raras, primeiras edições, prémios Nobel e escritores desconhecidos e desvanecidos pelo tempo. Posavam do alto dos móveis os mais variados livros de guerra, história, romance, policiais, geografia, aventuras, economia e política. As prateleiras cobriam todas as paredes da sala, exceptuando a da lareira. Essa parede era dividida pelo lume: dum lado encontrava-se a bebida, alcoólica e de preferência escocesa; do outro um velho relógio de pêndulo. De facto nada era novo naquela casa, nem mesmo o gato.
Na lareira onde outrora flamejaram belos troncos, pesados. Agora jazem apenas umas pobres brasas. A idade não favorece a qualidade de vida e se não fosse a manta ao colo do octogenário, este já teria partido para o outro mundo, pétreo. O gato aquece-lhe os tornozelos, uma vez que os pés isquémicos já nem sentem o calor. Os 15 anos do gato transformam-no no mais novo da casa. Se no entanto fosse feita uma relação entre a idade humana e do gato a pequena da casa seria a mulher-a-dias que 3 a 4 vezes por semana vai ver se está tudo bem, arruma e limpa. E essa já tem uns 50 anos. Chama-se Rajá, o gato. Apesar do nome não é persa, na verdade é um gato de rua. Pobrezinho é a única coisa em casa que não é de qualidade, não é de marca. Mas vai dando para o gasto, aquecendo o dono ou pura e simplesmente expulsando os ratos que tendem a aparecer no solar.
Vive sozinho o pobre velho, assombrando o solar, chutando o rabo ao gato quando a insanidade toma conta da sua cabeça, passeando pelos vastos corredores desertos e despejando o pó dos livros no chão. Um dia teve uma mulher, o nome dela era Catarina. Veio de Viseu só para ele, casamento arranjado pelos pais. Nunca se revoltara, nem ele nem ela. Foi sorte e houve amor entre eles. Tiveram um filho: o João, João Mateus. O pai chamava-lhe fadista, a mãe pequeno príncipe. Nenhum dos dois lhe adivinhou o futuro. Tentou ser engenheiro mas a guerra colonial chamou-o cedo demais e lá lhe ficou a vida. O corpo chegou todo furadinho, nem a cara se lhe conservou, e só o identificaram pelos dedos compridos e pelo anel brasonado. Amor de mãe é forte, a pobre senhora não se aguentou e após anos e anos de depressões, choros e mágoa, lá acabou por conseguir suicidar-se. Atirou-se do piso de cima, estatelando-se no chão e dando cabo da brilhante, e antes limpa, calçada portuguesa. O chão lá ficou com a marca dela, mesmo em frente à porta de casa. O velho foi-se abaixo e mesmo mandando arrancar o chão todo e colocar um novo, passou a usar apenas a porta das traseiras.
Apesar de tudo recusou-se a ir-se embora, quer do solar, quer desta vida. Resolveu viver, apesar de no fundo já estar morto. A princípio para lhe fazer companhia tinha uma sobrinha, filha do falecido irmão, Deus o tenha. Mas a pobre rapariga mudou-se há uns anos para Lisboa e agora apesar da boa vontade da moça só a vê de mês a mês. Mas tem o gato. Esse gato castanho, com manchas pretas a lembrar sujidade, lá se vai roçando no velho recordando-o do afecto perdido, adormecendo-o, acordando-o… Vive de afectos o pobre senhor. Alimento já gasta pouco, a empregada tem o visto desperdiçar tanta comida que cada vez faz menos. É uma tristeza vê-lo na sala de estar calado, ao topo duma mesa enorme, sozinho. O mundo abandonou-o. A verdade é que nem a morte o tem ajudado, ou já o teria poupado a todo este sofrimento.
São um casal estranho, o velho e o gato, mas são inseparáveis e ternos. É de facto delicioso ver o Sr. Mateus sentado na poltrona, acariciando com as mãos trémulas e fracas o gatão. Esse enorme monte de pelos cresceu sobre a asa da antiga monarquia e foi alimentado como tal. A relação destes dois é pura simbiose, não tenho qualquer dúvida que um sem o outro pereceria.
O dia dos dois alterna entre a manhã a cuidar dum pedaço de horta, a tarde a ler, e a noite a ver a novela. A horta, essa vai diminuindo de ano para ano acompanhando a evolução da senilidade. A hora de ir dormir vem também cada vez mais cedo, para agrado do gato bonacheirão. Essa é altura derradeira do dia. Rigorosamente o velho veste o pijama e enfia-se na cama. O gato salta e deita-se ao seu lado aconchegando-se ao seu magro corpo. Então enquanto dorme o bom Mateus entra pela porta onde entra todas as noites e nesse mundo mágico vê o filho sentado a ler na sua poltrona. A sua mulher está ao seu colo e três miúdos gritam “Avô!” quando o vêem chegar. A Catarina Mateus sorri, entrega-lhe um copo de whisky e todos juntos conversam toda a noite. Umas vezes ele conta uma história aos pequenos, seus herdeiros, outras o próprio filho ensina-lhe coisas do mundo das ciências. Brincam e riem e o gato faz-lhes companhia aconchegando-se a cada um de cada vez. O lume enche a casa de luz e as labaredas mais parecem fogo de artifício.
Todas as noites o bom velho vive… e é feliz.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Escolha

A noite estava gelada. O vento varria as folhas que, mesmo despedaçadas e espezinhadas no chão, sustiam ainda os seus passos pesados. Pesados pela culpa e pela vergonha. Nada na vida podia muda-lo tanto, nada na vida o tornara mais cobarde. Ele, só um estudante, enfrentava um dos maiores dilemas. Ela, só uma rapariga, estava grávida. Nem estrelas, nem discotecas, nem amigos podiam suster agora o lábio trémulo e as lágrimas que caíam, que se estatelavam no chão húmido. Dois meses separavam-no do derradeiro momento. Agora já nem andavam mal se falavam. Mas ele acreditou quando ela lhe disse, nem sequer pôs em causa a sua paternidade, nem disse nada. Calou-se. Ela falou pelos dois, chorou (mais do que ele), disparatou contra a sua apatia e jurou que iria abortar. Quem cala consente e ele consentiu. Acho que no meio de tudo ainda tentou esboçar uma palavra mas não conseguiu. Ela seguiu na neblina, ele ficou quieto por ainda mais dez minutos. Seria impossível enumerar tudo o que lhe passou pela cabeça mas acho que nesse momento pensou em tudo. Ou em nada. Encontrou-se vazio, impotente, sozinho... Estava ainda a meio dum curso de medicina. Vivia ainda a ridicularia da juventude e o prazer dos "flirts". Vivia debaixo da asa dos pais. Nunca pensou ter de lhes dar uma notícia tão trágica. "Talvez seja melhor não lhes dizer nada", pensou. De facto não fazia sentido. Afinal de contas dentro de uns dias tinha o problema resolvido. Ela própria tinha dado o corpo ao manifesto em prol da resolução do problema. Ele só tinha que esperar...
A angústia subia-lhe ainda pelo corpo e a trágica noticia não lhe dava descanso. Ele ainda caminhava, mas era como se estivesse parado. Tudo o que lhe passava pela cabeça abstraía-o do mundo, da vida. Por pouco não foi mesmo atropelado. Como? Porquê? Porquê ele? Porquê com ela? Porquê agora? As suas perguntas eram tão vagas e inúteis como as respostas que inventava. Sempre se achara superior a este tipo de problemas - "isso só acontece aos outros". Agora os problemas batiam-lhe à porta. Era sem dúvida hora de crescer de deixar de ser tão imaturo, tão infantil. Iria levar a vida a sério depois deste susto. Tinha que ter outro tipo de segurança...
Subitamente ergueu a cabeça, as suas ideias baralhadas tomaram um caminho oposto e ele seguiu direito até um miradouro. Subiu a grade, passou-a, e apoiado com os calcanhares e seguro pelas mãos gritou. Ninguém sabe bem o que disse... nem se disse alguma coisa. A sua mente estava demasiado confusa, nada nem ninguém a conseguia analisar senão ele... Nada nem ninguém sentia agora o que ele sentia. Por momentos o vulto escuro debruçou-se um pouco mais sobre o abismo, mas apenas uns centímetros. O suficiente para ver o fundo, o fundo do poço em que se encontrava. Quieto, respirava fundo, ruidosamente. Então rapidamente soltou uma mão, virou-se e saltou a grade apoiando-se em terra firme. Parou por momentos mas depressa tomou uma marcha apressada e decidida. Ia falar com ela. Ele queria aquele filho (era dele!). Ia pedir-lhe que não o matasse.


P.S. Este “post” não tem o objectivo de influenciar ninguém nem ofender ninguém pela a sua opinião. Apenas quis escrever algo e como este assunto é-nos todos os dias impingido pela comunicação social é impossível ficar-lhe indiferente. Peço desculpa mas era inevitável tomar uma posição.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

aquele momento.. o amor..

A noite estava fria.
Passava da meia-noite.
As ruas vazias de gente. Cheias de nevoeiro.
No céu a Lua Cheia iluminava e previa uma noite quente para os amantes.
Na sala ele acendia a lareira enquanto ela tomava banho.
O fogo começou a aquecer aquele espaço que iria testemunhar uma noite de amor e paixão.
Ele despe a camisa e senta-se no sofá.
Enquanto a espera vai observando os seus gostos. As cores, os quadros, o cheiro das velas.
Sente-se bem ali.
Subitamente ouve a porta da casa de banho abrir e o som de dois interruptores e conclui que vai ao quarto vestir uma lingerie especial para assinalar aquele momento.
A noite era especial porque ambos sabiam que seria a primeira de muitas. E a consolidação do amor que nasceu entre os dois.
De repente sente que ela se aproxima.
Entra na sala.
Ele ficou petrificado por verificar que na pele ela apenas trazia a vontade e o desejo de fazer amor.
Completamente nua aproxima-se e deita-se no chão.
Ele percebeu que ela aguardava que ele a explorasse. Estava a oferecer-lhe o corpo e a alma.
O corpo e o cabelo ainda molhados deixaram-no completamente doido de desejo.
Começa por observar a sua respiração acelerar enquanto viajava com as mãos no seu corpo.
A pele arrepiada e a cor dos seus lábios deixavam transparecer o prazer que ela estava a ter.
De repente ela levanta-se, despe-lhe a roupa e deita-o no chão. Anseia senti-lo.
Nada dizem enquanto fazem amor.
Olhos nos olhos vão transmitindo aquilo que desejam e sentem.
Ele estava deslumbrado com a imagem dela.
Tronco hirto, movimentos únicos e subtis.
A lareira por trás confiava-lhe uma aura de fogo nos cabelos molhados e no corpo suado.
Abraçaram-se com intensidade porque ambos descobriram que aquele momento tinha criado a coisa mais linda e maravilhosa do mundo.
O Amor.