quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

A Mercearia

Não falha é domingo. Ao olhar apercebo-me da parede vandalizada que sustém aquela varanda gradeada no primeiro andar. Os putos estragaram a pintura ao Machado! Qual Machado? O Machado da mercearia!
Do alto dos seus 67 ele lê um livro de capa verde. O livro aparenta ser tão velho como aquelas barbas enormes e brancas. Os seus olhos atentos percorrem as linhas com um rigor antigo, a arte da leitura. Analisa cada frase enquanto a lê, sorve qualquer significado, por mais escondido que se encontre. Para debater livros não há melhor. Seria um prazer ver o velho Machado dar conferências sobre literatura a professores universitário. Conhecimentos tem ele. O pior é a boca desdentada e as palavras que lhe saem da boca assim como são formadas no cérebro: brutas. Quem o vê, sentado numa cadeira de baloiço, lendo Eça, Vitor Hugo, Pearl Buck e o outro Machado (o de Assis) pensa que temos perante nós uma pessoa de elevada cultura. Nada mais enganoso.
O Machado só fez a 3ª classe, aprendeu a ler quase sozinho e nas contas nunca se engana, ou quando "acidentalmente" se engana fica sempre a ganhar. É um negociente à antiga, um trabalhador incansável. Sim é trabalhador, de modo que a mistura activa entre a transpiração, o perfume (que a esposa lhe ofereceu num Natal em que eu ainda nem existia), a falta de higiene e o bafo a vinho e bagaço é basicamente a imagem de marca do Machado. Ou será o cheiro?
- Ei pá! Cheiras mesmo a machado!
Brincadeiras de miúdos, inocentes. Nada a ver com aqueles que lhe pintaram a parede. Dum lado um gatafunho exibe "letras" rosas e azuis. Não obstante a foleirada, temos do outro lado a piece de resistance: os miúdos pintaram na parede um pénis gigante, mesmo ao lado da porta onde entra e sai todos os dias a Srª Adelaide Machado. Beata do pior. Apregoa a salvação aos pecadores, ofende namorados, fala mal de todas as vizinhas, conhecidas e amigas. Do marido nem se fala. Cada vez que sai à porta já o está a ofender. Depois vai à Igreja de S. Lourenço, rezar pela alma dos outros, pedindo paz no mundo e mais um perdão para os outros todos. Ela nem se confessa. Porquê? Ela não peca... Os outros sim deviam-se confessar mas não o fazem. Então ela, a boa samaritana, confessa-os a todos, pecado a pecado. Todos ouvidos na mercearia da concorrência, a da Dona Ulmerinda. Na do marido não põe os pés! Valha-nos isso, senão ia-se o sorriso ao velho. Sim, o sorriso, a alegria.
Apesar do cheiro a mercearia do Machado era concorrida. ele vendia conversa, boa disposição e até umas bejecas frescas e um bagacito. Às vezes também se acabava. Então religiosamente punha toda a gente na rua fechava a porta e ia à tasca mais próxima buscar um garrafão prá malta. Ou pra ele. Lá voltava ele sorridente, de copo meio vazio numa mão e de garrafão na outra. E lá se retomava a conversa. Era agradável passar ali uma tarde a falar de bola. Nós, putos do Desportivo, tínhamos sempre um rebuçado de borla. Os do Estrela eram corridos à pedrada, chamados de filhos de não sei quem e nunca mais lá voltavam. Devem ter sido eles que pintaram esta fachada.
E lá estava a tríade perfeita: velho, domingo e livro.
De dentro da casa a mulher gritava, gritava e gritava. Era um casamento à antiga, sustido pelo calor da discussão diária. Um casamento até que a morte nos separe, não como esses casais novos que se separam com meia dúzia de discussões, às vezes nem tanto.
Sinto saudades da velha mercearia. Ele reformou-se e nenhum dos filhos quis pegar naquilo: a miúda é cabeleireira na Rua do Comércio e o filho é engenheiro em Lisboa. O velho vive agora todos os dias como se fosse domingo, cultivando o que o Alzheimer vai apagando.

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