terça-feira, 16 de janeiro de 2007

O Padrinho

Corro desalmado pelo quintal de terra batida. Tenho os joelhos sujos de terra e do sangue de pequenas feridas, de quedas e tropeções, de brigas com o cão, com as pedras. As joelheiras valem-me, conservando as calças.
Está sol e os 8 anos aquecem-me neste dia primaveril maravilhoso. Ainda ouço o chilrear dos pássaros. O campo está florido e o antigo carvalho, já não contemporâneo, jaz onde nasceria a casa duma tia. Corro mais, ando de bicicleta. Mas desta nunca caí, nem a aprender... Tenho um terrível instinto de defesa: quando me desequilibro salto, logo imediatamente, largando a bicicleta pr'ás silvas e ficando intacto e limpo (ou quase!). É incrível como o céu está azul, acho que não consigo ver uma única nuvem branca. O azul é no entanto rasgado por jactos de avião, esquartejando-o...
-Bruno! Filho! Anda cá!
O chamamento maternal é sempre uma arma infalível, desperta-nos a genética, os instintos, a memória primitiva. Pode até ser ignorado mas nunca nos deixa indiferente, é a pura força da natureza. Acorro imediatamente saltitando.
As escadas subo-as a correr, como sempre, um degrau de cada vez. (A força valia-me apenas para isso, só consegui subir dois de cada vez uns anos depois. Já a descer saltava quatro e cinco, talvez até seis.)
A porta está encostada, transponho-a para entrar na sombra da fresca casa primaveril. Então com a minha mãe e o meu pai encaminho-me para o seu quarto. Sentamo-nos na dura cama de molas, dura como a madeira que a sustém. Ortopédica, diziam na altura em que a venderam... O anúncio é ainda mais duro e as frases são pesadas com grande rigor e cuidado. De repente, no suspiro final caiem as palavras que doem:
- O teu padrinho morreu...
O quê? Como? As lágrimas escorrem-me pela face... Nada mais consigo dizer... Mas sofro. E como sofro...
Fiquei ali, deitado no regaço da minha mãe. Ela carinhosamente foi-me passando a mão pelo cabelo e abraçou-me até que a noite nos deu o descanso merecido, nos secou as lágrimas. Ah, essas lágrimas, como sinto falta delas. Foram as últimas lágrimas sinceras, de amor e tristeza que soltei em toda a minha vida. A educação e a sociedade são duras demais para nos permitir, a nós homens, chorar.
Ainda me lembro que 3 dias antes, o vi pela última vez. A Sarel foi o local de encontro para um café. A minha mãe não pôde ir. Fui eu, com o meu pai. Lá estavam a minha madrinha e o meu padrinho (ai, como os amei e como os amo ainda). O estilo bem disposto que ele hasteia é preenchido pela fisionomia forte e cara dócil e de sorriso fácil (pelo menos para mim). Ele, que enquanto vivo considerei meu grande amigo, o melhor! Sim, porque pai é pai! Não é amigo, não entra nas mesmas contas. Falaram, não sei se me entretive a sorver-lhes as frases e ideias, se a brincar com qualquer porcaria. Lembro-me ainda do barulho... mas lembro-me ainda melhor da conversa que tivemos cá fora.
- Então rapaz! Vamos ver o Benfica! Anda comigo, eu vou amanhã.
- Não posso.
- Não pode. - retorquiu o meu pai
Da desculpa ou do motivo já não me recordo, sei que não fui. Vi-o entrar naquele ford branco, não me lembro do modelo, no meio do qual morreu. Dizem que foi um camião TIR que se despistou e lhe bateu pr'ós lados de Arraiolos, na antiga estrada nacional.
Durante muito tempo quis ter ido com ele, para que ninguém nos separasse, para evitar o que aconteceu. Hoje agradeço a sorte de estar vivo, de ter rejeitado o convite. Agradeço o facto de estar aqui e de te poder recordar. Por mim nunca serás esquecido.

Nesse ano, o meu padrinho não viu o Benfica campeão, mas em sua homenagem vesti várias vezes o equipamento que me deu. O cachecol ainda o uso, em ocasiões especiais.

1 comentário:

AM disse...

Conhecendo-te como te conheço tenho a certeza que a escrita de cada palavra deste texto não deve ter sido fácil, mas devo dizer-te que é uma vitória tua! Abriste o teu coração,deixaste sentimentos libertarem-se e virem á superfície de uma forma tão profunda, que comove qualquer pessoa. E se pros homens é difícil chorar confeço que as minhas lagrimas não ficaram retidas nas minhas glandulas lacrimais por muito tempo,não só pelo acontecimento em si, que já seria suficiente para as justificar, mas pela carga emocional que conseguiste transmitir numas simples palavras. Bjitos AM